18.5.16

O Zé merece um post

O Zé merece um post.

O Zé era dos meus amigos mais velhos. Não dos mais antigos, mas dos mais velhos. O Zé teria idade para ser meu avô. Ele era aliás um avô orgulhoso.

O Zé era Eng. Civil e adorava golf e ténis... ler, discutir, fazer...

O Zé nasceu em Angola e foi um self-made man (não sei a expressão em português). O Zé esteve na guerra. 

O Zé tinha histórias tão horríveis como maravilhosas. O Zé era um óptimo contador de historias. Dos melhores que já ouvi.

O Zé era o chamado "brilhante de cabeça". Adorava questionar tudo. Às vezes até irritava. Outras vezes era só (tão) bom.

Conheci o Zé com 19 anos e nunca mais desapareceu da minha vida. O Zé existia sempre. Estava sempre.

Discutimos muito. Ao início metia-me medo pelo pragmatismo e pela forma tantas e tantas vezes dura com que dizia as coisas. Depois frustrava-me porque me parecia que não me levava a serio. Conheceu me miúda e assumir que eu tinha crescido e que era capaz, foi um desafio. Consegui provar-lhe (acho!) que com o meu crescimento tinha vindo a responsabilidade e a segurança. Começámos a ver-nos mais de igual para igual.

O Zé tinha uma cabeça tão boa que se enervava com o tempo que as vezes demorávamos a chegar às conclusões a que ele chegava quase de imediato. Outras era preciso percorrermos tudo para que fosse ele a perceber que a conclusão dele não cabia naquilo que era necessário. 

Mas quando errava ou não acertava (acho que ele gostaria mais assim), assumia o erro. Não às claras, mas lá arranjava uma maneira, nem que fosse com um sorriso e um piscar de olho, que aceitava não ter visto o que devia ou feito o que era suposto.

O Zé tinha um sentido de humor extraordinário. Com poucas pessoas ri até chegar às lágrimas e com ele aconteceu várias vezes.

Era fácil ser amiga do Zé porque ele era um livro aberto. Era ao mesmo tempo muito difícil por isso mesmo. Podia haver apontares de dedo de parte a parte. Era às claras a olho nu, ao que fosse. Era sincero, era Amigo. Amigo significa isso, de dizer a verdade e de nos mostrar o que temos de mais e de menos bonito.

Deu-me tanto. Até nas discussões que me pareciam em vão de tão casmurro que era. Aprendi tanto com o método de puxar por algo que era aparentemente despropositado e que de repente ganhava sentido e nos fazia seguir.

O Zé esteve sempre, de “pedra e cal”. Nunca baixou braços, cabeça, desistiu. O Zé nunca se limitou a dizer. O Zé fez (“Ouve um tempo em que eu acreditei em palavras” – São Francisco de Assis).

Todos tivemos um tempo para nos enamorarmos do Zé.

O apelido do Zé era Guerra. E é essa a imagem que tenho... a de um guerreiro, até ao fim.

Não gosto de falar do Zé no passado. O Zé partiu ontem mas nunca se irá embora porque a marca que deixa é tão grande que isso não seria possível. Perdemos e gastamos tempo com tanto que não importa e o tempo escapa-se-nos e perdemos oportunidades de ver e dizer o quanto somos amados. O Zé era-o. Por tantos!

O Zé declamava poesia lindamente e fica aqui o último poema que tive o privilégio de o ouvir recitar. Como não há coincidências, nele o revejo tanto:

Que a força do medo que tenho
não me impeça de ver o que anseio
que a morte de tudo em que acredito
não me tape os ouvidos e a boca
porque metade de mim é o que eu grito
mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
seja linda ainda que tristeza
que a mulher que amo seja pra sempre amada
mesmo que distante
porque metade de mim é partida
mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
apenas respeitadas como a única coisa
que resta a um homem inundado de sentimentos
porque metade de mim é o que ouço
mas a outra metade é o que calo.
Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz que eu mereço
e que essa tensão que me corrói por dentro
seja um dia recompensada
porque metade de mim é o que penso
mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste
e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
que o espelho reflita em meu rosto num doce sorriso
que eu me lembro ter dado na infância
porque metade de mim é a lembrança do que fui
a outra metade não sei.
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
pra me fazer aquietar o espírito
e que o teu silêncio me fale cada vez mais
porque metade de mim é abrigo
mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta
mesmo que ela não saiba
e que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
porque metade de mim é platéia
e a outra metade é canção.
E que a minha loucura seja perdoada
porque metade de mim é amor
e a outra metade também
.” Oswaldo Montenegro”

Obrigada querido Amigo por tudo e por tanto. Por tantas emoções que ficaram gravadas para sempre.

Ate já!

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